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quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

‘Quando Não Interessa Mais Aos Homens, A Mulher Se Volta Para Deus’

written by Paulo Nogueira

Concursos informais de beleza em redação são relativamente comuns. Uma vez, na Exame, no final da década de 1990, o jornalista Adriano Silva – que posteriormente faria um trabalho excepcional de renovação editorial na Superinteressante – criou o prêmio “RH do Ano”, para reconhecer os homens que tinham contratado as mulheres mais bonitas. Houve um surto de indignação na camada mais velha entre as jornalistas da revista. Correu até um abaixo assinado. Este episódio foi a base deste capítulo de “Novo Tempo”, o romance que estou escrevendo inspirado no universo fascinante, caótico, enlouquecedor e sublime das redações.
Capítulo 17 – Aquele em que Voltaire é invocado para explicar o mau humor das mulheres velhas
Lúcia estava furiosa. Ela ficara sabendo que corria na redação uma eleição para o prêmio “RH do Ano”. Não se tratava, evidentemente, de verificar quem contratara as pessoas mais talentosas. O objetivo era ver quem trouxera para o jornal as mulheres mais bonitas e mais gostosas.
Duas décadas atrás, Lúcia era presença certa neste tipo de lista. Achava divertida a brincadeira, uma forma inofensiva de relaxar a tensão no ambiente frequentemente nervoso de uma redação. Mas com o tempo foi progressivamente deixando de ver graça naquilo. O sentimento de indignação se consolidaria na primeira vez em que ela não apareceu numa lista.
Ela correu à sala de Claudio assim que soube da votação para o “RH do Ano”. Vestia um tailleur bege de executiva e o cabelo tingido meticulosamente estava, como sempre, preso num coque. Uma vez, numa reunião dos editores, alguém dissera que era uma tendência entre as mulheres não mais tingir os cabelos. A economista francesa Christine Lagarde fora citada como exemplo, com seu charme e elegância como que sublinhados pelos cabelos brancos. “Nem morta”, pensou Lúcia. Para ela, a tintura era uma vitória e não um a derrota para as mulheres. Lúcia tinha sempre um lenço no pescoço. Para ela, o pescoço era onde a idade da mulher inapelavelmente se revelava. Não havia plástica que resolvesse o drama do pescoço enrugado.
“Querido, posso entrar?”, disse ela, à porta de Claudio. Era uma palavra que ela usava sempre, querido, cadenciadamente. Quase nunca havia sinceridade nisso. No jornal, a única pessoa que Lúcia verdadeiramente apreciava e admirava era ela mesma. O uso intensivo de “querido” acabou fazendo com que os colegas lhe dessem o apelido de Querida.
Claudio estava lendo um livro sobre os barões da imprensa. Estava no capítulo que falava de Joseph Pulitzer. Destacara uma passagem em que Pulitzer dizia num memorando a um subordinado: “Você é pago para interpretar e executar as minhas idéias. Não se esqueça disso. Se você fosse melhor que eu, estaria no meu lugar.” Naqueles dias, no século 19, era verdade. Os barões quase sempre tinham começado a vida como simples jornalistas, e numa época em que montar um jornal não era um empreendimento tão caro assim, aproveitavam as oportunidades que o talento e a ambição lhes traziam. Mais tarde, fundar ou comprar um jornal se tornaria um negócio para capitalistas, algo completamente fora do alcance de qualquer jornalista por mais brilhante que fosse.
Claudio detestava ser interrompido quando estava lendo, mas jamais dizia não a quem queria falar com ele, salvo em circunstâncias excepcionais. Claudio disse a Lúcia que entrasse e sentasse.
“Não podemos deixar isso acontecer”, disse ela. “É um horror.”
O que seria um horror?
Claudio fico segurando o livro, na esperança de que isso encurtasse a conversa. Era uma tática que empregava constantemente.
“Esse jornal não pode admitir uma coisa tão obscena”, disse Lúcia.
Obscena?
Algum casal fora pilhado no banheiro do jornal fazendo sexo?
Claudio esperou que Lúcia falasse.
“A tal lista de RH. Para ver quem contratou as mulheres mais bonitas. Uma palhaçada. Esse tipo de coisa desmoraliza o jornal. Já está correndo um abaixo assinado.”
Puta que o pariu. Isso é motivo para tamanha indignação?
Claudio discordava completamente. Para ele, era o tipo de brincadeira que deixava alegre a tropa. Mas ele não queria esticar a conversa. Não convenceria Lúcia de nada, e nem seria convencido por ela. Claudio lembrava quando ela parecia ter uma opinião bem diferente de eleições de beleza entre os jornalistas.
O maior problema do tempo não é corroer a beleza. É petrificar a alma.
A vontade de Claudio era dizer simplesmente: “Deve estar faltando sexo na sua vida. Que-ri-da …” Mas disse que ia ver o que podia fazer e despachou Lúcia.
Logo mais ela vai virar monja budista, pensou Claudio. Lembrava de uma frase sabiamente imortal de Voltaire. “Quando uma mulher deixa de interessar aos homens, se volta para Deus.”
É melhor que isso aconteça, concluiu Claudio. Talvez ela perca um pouco dessa amargura raivosa. Ele voltou à leitura de seu livro, mas logo perdeu a concentração. A imagem de Daniella invadiu sua mente. Era o oposto de Lúcia, uma cheia de rancor, pesada como um saco de roupa molhada, a outra leve, irradiando sensações positivas.
Será que estou apaixonado? Ela tem idade para ser minha filha.
Em meio a tantas incertezas, Claudio tinha uma convicção.
Não. Daniella não se tornará uma Lúcia.

FONTE: http://www.diariodocentrodomundo.com.br/?p=6353

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