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sábado, 23 de junho de 2012

Salada


Você já viu o estrago que o acido clorídrico faz na carne de um gato morto e apodrecido na calçada? Eu já. E fede. O vapor da carne misturado com a química subindo e a cara da molecada assustada ao redor é uma das lembranças que tenho do que chamamos de lances inesquecíveis da infância. O gato já estava meio esmagado ali há alguns dias. Acho que os ratos comeram os olhos e parte das pernas traseiras. Dizem que os ratos atacam os olhos e o ânus de um cadáver em primeiro lugar. Quem arrumou o ácido foi um daqueles garotos ao redor, pegou na prateleira do depósito na farmácia em que fazia bico de entregador. Ele também surrupiava camisinhas que a gente enchia d'água e jogava da janela do apartamento. Às vezes, raras, enchíamos de ar. O objetivo era acertar os tróleibus que vinham do Largo do Belém e iam para o Largo de Pinheiros. Atravessavam a cidade, a avenida Ipiranga, a São Luiz, subiam e desciam a Augusta, viravam ali na Faria Lima. Várias vezes subimos para descermos pela porta de trás e não pagarmos. Já paramos um deles para perguntar as horas para o motorista. Acho que foi a primeira vez que vi um adulto xingando uma criança com ódio mortal. Eu e esse garoto fazíamos essas coisas. Também jogávamos bolinha de gude pela janela do apartamento. Geralmente elas espatifavam no asfalto espalhando vidro feito uma granada de cristais. Uma vez, uma ricocheteou inteira na guia, saltou para dentro da lotérica do outro lado da avenida e arrebentou um daqueles vidros no balcão que separam o cliente do atendente. Deu até polícia. Ficamos lá do terraço vendo a encrenca desvanecer. A carne do gato chiava cada vez que eu tombava o tubinho espalhando a destruição. Quando continuei jogando na cabeça e parte do ácido escorreu para o ventre e derreteu pêlo e carne, vermes afoitos saíram do buraco e se arrastavam e se contorciam de dor. A dor do gato estava neles. Foi então que um daqueles moleques resolveu chutar o gato podre grudado no asfalto. Não foi o meu amigo farmacêutico, foi um cujo pai trabalhava pendurado nos postes arrumando fios de alta tensão pela cidade. Na verdade, em Osasco. Nessa hora, parte dos vermes e ácido foi para as pernas de um outro que estava agachado bem próximo ao gato, aliás o mais próximo do gato era ele porque o tubo estava comigo, mas eu jogava e me afastava por causa do cheiro. Alguns vermes foram parar na cabeça de careca por causa dos piolhos que ele sempre pegava. A maior parte do ácido, para sorte dele, pegou na perna. A pele da coxa dele também borbulhava e chiava feito as tripas do gato podre. Ele urrava de dor. A dor do gato estava nele. Estavamos numa esquina próxima ao Mercado da Cantareira e não havia nenhum bar aberto àquela hora de domingo para pegarmos água, pelo menos. Ele urrava e urrava. O garoto que chutou o gato gargalhava tanto que rolava no chão. Na cabeça do menino que urrava de dor havia três vermezinhos que rastejavam trôpegos no cabelo ralo raspado com máquina zero. Na cara dele também. A mãe do chutador de gato podre me ligou para saber o que realmente havia acontecido. Falou para eu ir lá contar as coisas. Lembro que a palavra realmente veio cheia de ênfase tipo "se você não me disser realmente o que aconteceu, conto pra sua mãe, seu bostinha". A mãe do chutador nem conhecia minha mãe e não disse nada disso, mas sabia que se contasse para minha mãe, eu tava fudido e mal pago. E ela gostava de mim, a mãe do chutador. Fui lá no dia seguinte. Eu e o chutador de gato podre íamos para a escola juntos, fiquei de almoçar lá. Ela estava fazendo salada. Lavava as cenouras com uma raiva militar. Raspava as cenouras com uma faca que de tanto ser afiada por um daqueles afiadores de rua, estava com o corte curvado para dentro. Enquanto me perguntou porque eu estava jogando ácido no gato e se aquilo era coisa de criança estar mexendo, lavava as verduras da salada. Eu estava meio cabisbaixo e observava atento as mãos daquela mulher lidando com as coisas culinárias. Fez as perguntas de tal modo que no final das contas, o garoto com vermes na cabeça era o boboca culpado pelo fato de estar tão perto dessa porcalhada que só moleque faz. As folhas da alface sofreram na mão daquela mulher. Ela batia tanto com aquelas folhas crespas na borda da pia que toda a cozinha ficou molhada e respingada com tal performance. Tive medo daquela faca, daquela mulher e de ser uma folha de alface apanhando na borda da pia. A faca realmente era afiada. Lembro das tiras finas que ela arrancava dos tomates sobre a tábua encharcada e da lentidão com que tombavam meio cansadas, quase mortas. Lembro do cheiro do tempero do feijão rajado aumentando minha fome. Logo ela fritou os bifes e ovos. Enquanto fritava, me contou que a mãe do careca que urrava tinha ido lá tirar satisfação. Ela levou um grande vai tomar no cu pra casa, isso sim. Foi assim que ela me disse. O pai que trabalhava pendurado nos postes de Osasco me disse que tinha pago todas as despesas medicas e que o moleque careca que urrava tinha levado seis pontos na coxa por conta do ácido. Tinham ido ao hospital ontem à noite mesmo. Eu e o chutador de gatos podres botamos a mesa. O irmão mais velho dele não parava de sacanear com toda aquela história. Era - ainda é? - um grande filho da puta retardado. Na tv da sala passava Globo Cor Especial em preto e branco e aqui ó, não comi porra nenhuma de salada não.
FONTE: http://corsarios-efemeros.blogspot.com.br/2012/04/salada.html

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