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terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Aventuras dos “técnicos” da Eurozona...

JOSÉ MARTINS

A falência da nem um pouco comum moeda europeia (euro) avançou um pouquinho mais a partir de 21/12/2011. Inesperadamente, o Banco Central Europeu (BCE) decidiu emprestar cerca de 489 bilhões de euros (635 bilhões de dólares) para os bancos privados do continente. Isso é inacreditável. Esse monumental volume de moeda equivale ou ultrapassa o valor do produto interno bruto (PIB) de economias médias da Europa, como Holanda (780 bilhões de dólares), Suíça (530 bi), Bélgica (470 bi), Suécia (460 bi) e Noruega (410 bi). É mais que o dobro do PIB da Grécia (300 bilhões de dólares) e o triplo do PIB de Portugal (230 bilhões de dólares) e da Irlanda (210 bi).
Como o BCE consegue “produzir” em poucos segundos um volume de capital bancário equivalente ao que a maioria das economias da eurozona demora anos para produzir em termos de valor real? Até antes do último período de crise (2008-2009), os economistas vulgares, como Krugman et caterva, chamavam Alan Greenspan, antecessor de Ben Bernanke na direção do Federal Reserve (Fed, banco Central dos EUA) de “assoprador de bolhas”. E agora, qual apelido eles poderiam dar ao atual presidente do BCE, um italiano que atende pelo nome de Mario Draghi?

CASA-DA-MÃE-JOANA – Signori Mário é mais um desses “técnicos” que empesteiam os governos e ambientes burocráticos europeus. Com eles, a tão festejada União Europeia transforma-se velozmente em uma imensa casa-da-mãe-joana. A linha de crédito aberta aos bancos europeus é de longo prazo (três anos) e a taxa de juros é baixíssima (1% ao ano). Compare-se com a taxa de 7% ao ano cobrado por esses mesmos bancos para absorver papéis do Tesouro da Itália, por exemplo. O BCE justifica a medida: possibilitar aos bancos privados comprar os papéis dos governos mais endividados e dar liquidez ao sistema. Não é uma maravilha? Toma-se empréstimo de longo prazo de 1% ao ano e empresta-se no curto-prazo com taxas de 7%. O livre mercado é a coisa mais natural e maravilhosa do mundo!
Mas, perguntaria o homem comum, se o objetivo é que esse dinheiro chegue aos governos endividados, por que não emprestar diretamente para os dito cujos? Porque, respondem prontamente os economistas, seria uma intervenção indevida no livre funcionamento das virtuosas e naturalíssimas forças do mercado. Afinal, quem é contra o mercado? Ou contra o lucro dos capitalistas? Para que, então, eliminar os criativos empreendedores intermediários? Por que duvidar da benemérita mão invisível do livre mercado, que sempre transforma a busca egoísta do interesse privado em virtudes públicas?
Além do mais, promete o cínico economista liberal, pelo menos esse dinheiro vai acabar chegando aos cofres da Grécia, Portugal, Itália e outros náufragos do sistema. A prova? Basta seguir os ensinamentos da trickle-down economics– expressão criada pelos nos EUA para propagandear que os cortes de impostos ou outros favores dos governos aos capitalistas e outras classes proprietárias beneficiará as pessoas pobres da sociedade indiretamente, pelo enriquecimento dos capitalistas e crescimento da economia como um todo. A expressão é quase intraduzível, mas a moral da história é muito clara – encha de dinheiro o rabo dos que estão em cima que sempre sobra alguma coisa para os que estão em baixo.

SALVANDO BANCOS – Na prática a teoria é outra, decretou o próprio mercado, alguns minutos depois da divulgação da destrambelhada (e altamente lucrativa) decisão dos “técnicos” de Frankfurt. Quando foi divulgada a notícia, todas as bolsas do mundo subiram; alguns minutos depois, feitas algumas continhas, caíram pesadamente. Havia um cheiro de mutreta no ar. Não se esperava, mesmo entre experimentados operadores do mercado, que os bancos fossem com tanta sede aos guichês do BCE para meter a mão na grana. Em poucos minutos, os bancos “devoraram” – para usar a expressão da Bloomberg, que acompanhava “in sito” os acontecimentos 1 – a totalidade dos 489 bilhões de euros da generosíssima linha de crédito disponibilizada pelos “técnicos” do BCE.
A suspeita de que esse dinheiro nunca chegará aos cofres das falidas economias europeias logo se transformou em certeza. Pior, a voracidade dos bancos em cima do fundo do BCE redobrou as dúvidas sobre a estabilidade do sistema bancário europeu. Calcula-se que o montante devorado nesta semana seja suficiente para alavancar apenas 63% dos débitos podres em poder dos bancos, que devem vencer no ano novo que se inicia dentro de dez dias. Resultado: a montanha de liquidez induzida pelo BCE continuará “empossada” nas reservas para caloteiros inveterados da contabilidade dos bancos. A análise do diário de economia La Tribune, de Paris, confirma essa suspeita: "A ação do BCE destina-se sobretudo aos bancos. Não é uma resposta direta à questão das dívidas soberanas. Estes financiamentos devem proteger as economias europeias de um credit crunch. Constituem uma resposta ao fato de os bancos terem deixado de fazer empréstimos entre si, que permitindo ao mesmo tempo que os estabelecimentos financeiros prossigam com os suas operações sem correr riscos maiores sobre as suas taxas de liquidez. Apesar das incitações do BCE, é muito pouco provável que os bancos utilizem esse fundo para comprar a dívida soberana, ou uma dose infinitesimal, de acordo com o princípio de cada um por si... O problema do financiamento dos Estados da zona euro continua igual. [...] O fato de o BCE se estabelecer como credor de última instância dos bancos tende apenas a apaziguar provisoriamente as preocupações. Mas o período de paz será curto, enquanto continuará a haver incertezas relativamente ao financiamento da dívida dos Estados." 2
Pode-se acrescentar que os banqueiros podem até comprar mais dívidas dos governos no ano que vem. Afinal, o mercado não vive sem grandes emoções. Seus lucros, na academia nos ensinam os manuais de moedas e bancos, são diretamente proporcionais à taxa de risco. Quanto maior o risco, maior o lucro. Neste ano, está em torno de 7%; no próximo poderá subir para 8% e assim por diante. Os bancos se salvam e as economias se ferram. Aos bancos não interessa nem um pouco que os devedores paguem suas dívidas, e muito menos que elas diminuam. Interessa apenas o pagamento em dia dos juros. A crise financeira do bloco tem que continuar, como nos informa La Tribune.

OS MORTOS VIVOS – Duas perguntinhas básicas que surgem de todas essas manobras: primo, por que o BCE tem plena autonomia para emprestar para os bancos privados (mesmo que fabricando o capital mais fictício do mundo) e não tem nenhuma autonomia para fazer a mesma coisa com os governos do bloco? Não procure a resposta nas atas de Maastricht, como fazem os economistas em geral. As contorções atuais do capital bancário europeu e as loucuras dos “técnicos” nos últimos dias desvelam melhor do que qualquer consideração cartorial (acordos, etc.) as verdadeiras bases e objetivos da assim chamada moeda comum europeia.
Secondo: de onde surgiram esses recursos empacotados pelo BCE na última semana? Não se dizia no mercado que o BCE era um elefante branco descapitalizado? A fonte (pelo menos a origem contábil) desse capital emprestado ainda é um grande mistério. Não foi mencionada nenhuma participação de qualquer governo mais ou menos poderoso da eurozona. O BCE não tem capital próprio (diferente do Fed dos EUA) nem para pagar suas despesas de água e luz. Nem reservas internacionais, que, mesmo se existissem, como em uma economia normal, não poderiam ser usadas para esse tipo de operação de salvação dos bancos. Isso tudo extrapola até a ideia de capital fictício, como conhecemos na teoria econômica e, concretamente, em infinitos produtos do moderno mercado financeiro e de capitais. A aventura dos “técnicos” europeus nesta semana é diferente: é uma criação em grande massa de capitais zumbis, de mortos vivos comandando a miséria dos ajustes fiscais e destruição da população européia.

1 Bloomberg News – European Banks Devour Record ECB Emergency Funding [ Bancos Europeus Devoram Financiamento de Emergência Recorde do BCE], 21/12/2011
http://www.bloomberg.com/news/2011-12-21/european-banks-devour-ecb-emergency-funds-amid-frozen-markets.html
2 La Tribune – La BCE veut éviter un "credit crunch" – Paris, 22/12/2011
http://www.latribune.fr/entreprises-finance/banques-finance/html
MODIFICADO DE: http://www.almascorsarias.com.br/2011/12/critica-semanal-da-economia_26.html
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